O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

Índice | Página inicial | Continuar

Coração e vida — Maria Dolores


20


Amor materno

  1 Depois de zero hora. E a dama recordava

  O filho de quem fora venturosa escrava.


  2 No bairro, era o silêncio a dominar nas ruas…

  Quantas horas da noite? Um tanto, além das duas…


  3 E a senhora viúva, acostada no leito

  Lembrava o filho amado, o jovem belo e forte,

  Que o coração de mãe supusera perfeito,

  Cuja fuga de casa,

  Fora no pai amigo o motivo da morte.


  4 Vinte anos de ausência!… — e ela refletia

  Em todo aquele tempo de agonia.

  O filho que criara, a beijos de ternura,

  De quem não descansava na procura,

  A quem nunca levara o mínimo desgosto,

  E a quem ela e o marido haviam dado tudo,

  Dinheiro, ostentação, brilho e facilidades,

  Buscando adivinhar-lhe todas as vontades,

  Recusara o trabalho e renegara o estudo…

  Por fim, todo inclinado à cocaína,

  Desertou porque o pai tão somente o internasse

  Num colégio distinto em que se lhe evitasse

  A droga deprimente…


  5 Insone, calma e ativa,

  A memória se lhe aviva

  E inacessível a calmantes,

  Rememora a tragédia de anos antes.

  O moço nunca mais voltara ao lar.

  Ralada por extremo desconforto,

  Logo após, ela vira o companheiro morto

  De saudade e pesar.

  Mudara-se de bairro e residência,

  Mas nada lhe alterara as lutas da existência.

  Vinte anos de pranto e de aflição

  Haviam feito dela

  Pobre mãe transformada em sentinela

  Da casa nobre e farta, à espera do rapaz,

  Que lhe arrasara a vida, a segurança e a paz,

  E que ela amava ainda…


  6 Mas enquanto pensava, ouve um ruído leve.

  Escutou, escutou… Alguém de passo curto

  Estava em quarto próximo,

  Certamente na prática do furto.

  Ao choque, ela chamou, em altos brados,

  A colaboração dos empregados,

  Mas o assaltante se aproxima,

  A valer-se da sombra em todo o espaço estreito;

  Era um homem robusto a lhe cair por cima,

  Cravando-lhe um punhal no velho peito.


  7 Ergue-se um dos vigias,

  Vem às pressas,

  De longe, liga a luz…

  Eis que o quarto se fez de todo iluminado

  E o salteador não foge,

  Sente-se preso à mão que se lhe estende,

  Contempla a vítima que o fita,

  Num transporte de amor com ternura infinita…

  Reconhece o semblante maternal

  E a desfazer-se em pranto,

  Ajoelha-se e grita:

  — “Mãe querida,

  Por que cheguei a tanto,

  A tanto crime e a tanto mal,

  A ponto de acabar com a sua própria vida?…”


  8 A dama retirou a lâmina cravada

  — Doloroso empecilho —

  O sangue gotejou da ferida formada,

  E, em seguida, exclamou: — “Ah! meu filho, meu filho!…

  Que saudades de ti, quanta saudade,

  O tempo parecia a eternidade!…”


  9 Entretanto, o vigia invadiu o aposento,

  Vendo um homem chorando e a dama em sofrimento,

  Quis gritar e reagir, austero e humano,

  Mas a senhora diz: — “Ouça, Germano,

  Meu filho regressou, venha reconhecê-lo…

  Na precipitação de meu antigo zelo,

  Feri-me por engano…

  Caí sobre o punhal que eu trazia no seio,

  No entanto, estou feliz… Olhe!…Meu filho veio…

  Dê-lhe as chaves da casa,

  Tudo o que tenho é dele, a minha própria vida…”

  E conservando a mão sobre a parte ferida,

  Rogou ao servidor:

  — “Chame o médico amigo,

  Transmita a ele tudo o que lhe digo

  E explique este acidente…

  Meu filhinho chegou tão de repente

  Para fazer-me esta surpresa,

  Que caí no punhal em que eu mantinha

  Ou supunha manter minha própria defesa…

  Estou feliz, Germano, mas agora…”

  O servidor gritou: — “Ah! não morra, senhora!…”

  Entretanto, mais fraca e mais cansada,

  A dama ainda falou, muito pálida e triste:

  — “Germano, ajude agora ao meu rapaz

  Compreendo que estou chegando ao fim,

  Sê a ele fiel,

  Dê a ele o respeito, a estima e a bondade

  Que você sempre deu a mim…”


  10 O filho ajoelhou-se, em pranto comovente,

  E clamava, ao beijá-la, ansiosamente,

  — “Mãe, perdoa-me e vive, mãe querida!…

  Entremostrando o anseio de falar,

  Ela, porém, lhe deu o último olhar,

  Deu-se, de todo, a isso, fez-se forte

  E descansou, por fim, dizendo, ao entregar-se à morte:

  — “Louvado seja Deus!… Deus te abençoe, meu filho!…”


Maria Dolores


Abrir