O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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Revista espírita — Ano XI — Julho de 1868.

(Idioma francês)


A alma.

(Sumário)

A ALMA, demonstração de sua realidade, deduzida do estudo dos efeitos do clorofórmio  †  e do curare  †  sobre a economia animal [sobre o organismo animal], pelo Sr. RAMON DE LA SAGRA [1798-1871], membro correspondente do Instituto de França.  †  (Academia de Ciências Morais e Políticas),  †  da Academia Real de Ciências dos Países Baixos,  †  etc n


1. — Dissemos num artigo acima [A geração espontânea e a gênese] que as pesquisas da Ciência, mesmo visando ao estudo exclusivo da matéria, conduziriam ao espiritualismo, pela impossibilidade de explicar certos efeitos apenas com o auxílio das leis da matéria; por outro lado, temos repetido muitas vezes que na catalepsia, na letargia, na anestesia n pelo clorofórmio ou outras substâncias, no sonambulismo natural, no êxtase e em certos estados patológicos, a alma se revela por uma ação independente do organismo, e dá, por seu isolamento, a prova patente de sua existência. Não nos referimos ao magnetismo, nem ao sonambulismo artificial, nem à dupla vista, nem às manifestações espíritas, que a Ciência oficial ainda não reconheceu, mas aos fenômenos sobre os quais ela está em condições de fazer experiências todos os dias.

A Ciência procurou a alma com o escalpelo e o microscópio no cérebro e nos gânglios nervosos, e não a encontrou; a análise dessas substâncias não lhe deu senão oxigênio, hidrogênio, azoto e carbono, donde concluiu que a alma não era distinta da matéria. Se não a encontra, a razão é muito simples: ela faz da alma uma ideia fixa, preconcebida; imagina-a dotada das propriedades da matéria tangível; é sob essa forma que a procura e, naturalmente, não poderia reconhecê-la, ainda mesmo quando a tivesse sob os olhos. Uma vez que certos órgãos são os instrumentos das manifestações do pensamento, e que, destruindo esses órgãos, para a manifestação, a Ciência conclui muito pouco filosoficamente que são os órgãos que pensam, absolutamente como se uma pessoa que tivesse cortado o fio telegráfico e interrompido a transmissão de um despacho, pretendesse ter destruído aquele que o enviava.

O aparelho telegráfico nos oferece, por comparação, uma imagem exata do funcionamento da alma no organismo. Suponhamos que um indivíduo receba um telegrama e que, ignorando a sua procedência, se entregue às seguintes pesquisas: Segue o fio transmissor até o seu ponto de partida; no caminho procura o seu expedidor ao longo do fio e não o encontra; o fio o conduz a Paris,  †  à repartição do telégrafo, ao aparelho. Dize ele: “Daqui foi que o telegrama partiu, não tenho dúvida; é um fato materialmente demonstrado.” Explora o aparelho e o desmonta para procurar o seu expedidor, e não encontrando senão madeira, cobre, uma roda, diz: “Já que o telegrama partiu daqui e aqui não encontro ninguém, foi esse mecanismo que concebeu o despacho; isto me é demonstrado não menos materialmente.” Nesse ínterim, um outro indivíduo, colocando-se ao lado do aparelho, põe-se a repetir o telegrama, palavra por palavra, e lhe diz: “Como podeis supor, vós, um homem inteligente, que este mecanismo, composto de matéria inerte, destrutível, tenha podido conceber o pensamento do telegrama que recebestes, e conhecer o fato que este despacho vos comunicou? Se a matéria tivesse a faculdade de pensar, por que o ferro, a pedra e a madeira não teriam ideias? Se essa faculdade depende da ordem e do arranjo das partes, por que o homem não construiria autômatos pensantes? Alguma vez já vos veio ao espírito crê que essas bonecas que dizem: papá, mamã, tenham consciência do que fazem? Ao contrário, não admirastes a inteligência do autor desse mecanismo engenhoso?”

Aqui, o novo interlocutor é a alma, que concebe o pensamento; o aparelho é o cérebro, onde ela se concentra e se formula; a eletricidade é o fluido diretamente impregnado do pensamento e encarregado de o levar longe, como o ar leva o som; os fios metálicos são os cordões nervosos destinados à transmissão do fluido; o primeiro indivíduo é o sábio à procura da alma, que segue os cordões nervosos, procura-a no cérebro e, não a encontrando, conclui que é o cérebro que pensa; não escuta a voz que lhe diz: “Tu te obstinas em me procurar dentro, quando estou fora; olha para o lado e me verás; os nervos, o cérebro e os fluidos não pensam mais que o fio metálico, o aparelho telegráfico e a eletricidade; não passam de instrumentos da manifestação do pensamento, engenhosamente combinados pelo inventor da máquina humana.”


2. — Em todos os tempos fenômenos espontâneos muito frequentes, tais como a catalepsia, a letargia, o sonambulismo natural e o êxtase mostraram a alma agindo fora do organismo; mas a Ciência os desdenhou deste ponto de vista. Ora, eis que uma nova descoberta, a anestesia pelo clorofórmio, de incontestável utilidade nas operações cirúrgicas, e cujos efeitos, por isso mesmo, se é forçado a estudar, diariamente torna a Ciência testemunha desse fenômeno, pondo, por assim dizer, a nu a alma do paciente; é a voz que grita: “Olha para fora, e não para dentro, e então me verás.” Mas há criaturas que têm olhos e não veem, ouvidos e não escutam.


Entre os numerosos fatos desse gênero, produziu-se o seguinte na prática do Dr. Velpeau:  † 

“Uma mulher que não tinha manifestado nenhum sinal de dor enquanto eu a liberava de um volumoso tumor, despertou sorrindo e me disse: “Bem sei que terminou; deixai-me voltar completamente e vou explicar isto… Não senti absolutamente nada, logo acrescentou ela, mas eis como soube que estava operada. Em meu sono, fui fazer uma visita a uma senhora de meu conhecimento, para conversar sobre uma criança pobre que devíamos colocar numa instituição. Enquanto conversávamos, a senhora me disse: Credes estar neste momento em minha casa, não é? Pois bem! minha cara amiga, enganai-vos completamente, porque estais em vossa casa, em vosso leito, onde vos fazem uma operação agora mesmo. Longe de me alarmar com sua linguagem, respondi-lhe ingenuamente: Ah! se é assim, eu vos peço permissão para prolongar um pouco a minha visita, a fim de que tudo esteja acabado quando voltar para casa. E eis como, abrindo os olhos, antes mesmo de ser despertada de todo, pude anunciar-vos que estava operada.”

O clorofórmio oferece milhares de exemplos tão concludentes quanto este.

Comunicando este e outros fatos análogos à Academia de Ciências, em 4 de março de 1850, o Sr. Velpeau exclamou: “Que fonte fecunda para a psicologia e a fisiologia são esses atos que vão até a separar o espírito da matéria, ou a inteligência do corpo!”

Então o Sr. Velpeau viu a alma em ação fora do organismo; pôde constatar a sua existência por sua independência; ouviu a voz que lhe dizia: Estou fora, e não dentro. Por que, então, fez profissão de fé materialista? Disse depois, quando estava no mundo dos Espíritos: “Orgulho do sábio, que não queria desmentir-se.” Contudo, não temeu voltar atrás sobre certas opiniões científicas errôneas, que professara publicamente. Em seu Tratado de Medicina Operatória, publicado em 1839, tomo I, página 32, diz: “Evitar a dor nas operações é uma quimera que hoje não é permitido perseguir. Instrumento cortante e dor, em medicina operatória, são duas palavras que não se apresentam uma sobre a outra ao espírito dos doentes, e cuja associação deve-se necessariamente admitir.” O clorofórmio veio dar-lhe um desmentido sobre este ponto, como sobre a questão da alma. Por que, então, aceitou um e não o outro? Mistério das fraquezas humanas!

Se, em suas lições, o Sr. Velpeau tivesse dito aos seus alunos: “Senhores, dizem-vos que não encontrareis a alma na ponta do vosso escalpelo, e têm razão, porque aí não está e em vão aí a procuraríeis, como eu mesmo o fiz; mas estudai as manifestações inteligentes nos fenômenos da anestesia e tereis a prova irrecusável de sua existência; foi aí que a encontrei e todo observador de boa-fé a encontrará. Em presença de semelhantes fatos, não é mais possível negá-la, pois que se pode constatar a sua ação independente do organismo e, a bem dizer, isolá-la à vontade.” Falando assim, ele não teria feito senão completar o pensamento que emitira diante da Academia de Ciências. Com tal linguagem, apoiado na autoridade de seu nome, teria feito uma revolução na arte médica. Foi uma glória que repudiou e que hoje lamenta amargamente, mas que outros herdarão.


3. — Tal é a tese que acaba de ser desenvolvida com notável talento pelo Sr. Ramon de la Sagra, na obra que constitui o objeto deste artigo. O autor aí descreve com método e clareza, do ponto de vista da ciência pura, que lhe é familiar, todas as fases da anestesia pelo clorofórmio, pelo éter, pelo curare n e outros agentes, segundo suas próprias observações e as dos mais acreditados autores, tais como Velpeau,  †  Gerdy,  †  Bouisson [Prof. de Clín. Cir. na Fac. Med. de Montpelier], Flourens,  †  Simonin [Amédée H. Simonin?], etc. A parte técnica e científica aí ocupa largo espaço, mas isto era necessário para uma demonstração rigorosa. Ademais, contém fatos numerosos, onde colhemos o que referimos acima. Dela tomamos igualmente as seguintes conclusões:


“Desde que é um fato perfeitamente constatado pelos fenômenos anestésicos que o éter extingue a vida dos nervos condutores das impressões dos sentidos, mas deixando livres as faculdades intelectuais, também se torna incontestável que essas faculdades não dependem essencialmente dos órgãos nervosos. Ora, como os órgãos dos sentidos, que produzem as impressões, não agem senão pelos nervos, é claro que estando estes paralisados, todo o organismo da vida animal, da vida de relação, fica aniquilado para essas faculdades intelectuais que, não obstante, funcionam. Forçoso é, pois, confessar que a sua existência, ou melhor, a sua realidade, não depende essencialmente do organismo e que, desde então, elas procedem de um princípio diverso dele, independente dele, podendo funcionar sem ele e fora dele.

“Eis, pois, a realidade da alma rigorosamente demonstrada, incontestavelmente estabelecida, sem que nenhuma observação fisiológica a possa prejudicar. Podemos ver sair desta conclusão, como que jactos de luz clareando horizontes longínquos, que, entretanto, não abordaremos, porque esse gênero de estudos escapa do quadro que nos traçamos.

“O ponto de vista psicológico, sob o qual acabamos de apresentar os efeitos das substâncias anestésicas sobre a economia [o organismo] animal, e as consequências que daí deduzimos em favor da realidade da existência da alma, devem sugerir a esperança de que um método semelhante, aplicado ao estudo de outros fenômenos análogos da vida, poderia conduzir ao mesmo resultado.

“Nenhuma dedução seria mais justa, porque os efeitos fisiológicos e psicológicos que se mostram durante a embriaguez alcoólica, o delírio patológico, o sono natural e magnético, o êxtase e mesmo a loucura, oferecem a maior semelhança, em muitos pontos, com os efeitos das substâncias anestésicas que acabamos de estudar nesta obra. Uma tal concordância de diversos fenômenos, procedendo de causas diferentes, em favor de uma conclusão idêntica, não nos deve surpreender. Ela não é senão a consequência do que temos provado: a realidade da existência de uma essência distinta da matéria no organismo humano, e à qual são devolvidas as funções intelectuais que, sozinha, a matéria jamais poderia preencher.

“Seria aqui o lugar de examinar uma outra questão, de fazer uma incursão no domínio do magnetismo animal, que sustenta a permanência das faculdades sensoriais fora dos sentidos, isto é, da visão, da audição, do gosto, do olfato, durante a paralisia completa dos órgãos que, em estado normal, proporcionam essas impressões. Mas esta doutrina, cuja verdade não queremos contestar nem sustentar, não é admitida pela ciência fisiológica, o que é suficiente para que a eliminemos de nossas pesquisas atuais.”


4. — Este último parágrafo prova que o autor fez, para a demonstração da alma, o que o Sr. Flammarion fez para a de Deus, isto é, que ele se colocou no próprio terreno da ciência experimental e que quis tirar só dos fatos oficialmente reconhecidos, a prova de sua tese. Ele nos promete outra obra, que não pode deixar de ter grande interesse, na qual serão estudados, do mesmo ponto de vista, os diversos fenômenos que apenas menciona, pois se limitou aos da anestesia pelo clorofórmio.

Certamente esta prova não é necessária para firmar a convicção dos espíritas, nem dos espiritualistas; mas, depois de Deus, sendo a existência da alma a base fundamental do Espiritismo, devemos considerar como eminentemente útil à Doutrina toda obra que tenda a lhe demonstrar os princípios fundamentais. Ora, a ação da alma, abstração feita do organismo, uma vez provada, é um ponto de partida que, como a pluralidade das existências e o perispírito, pouco a pouco e por dedução lógica, conduz a todas as consequências do Espiritismo.

Com efeito, o exemplo referido acima é do mais puro Espiritismo, do qual o Sr. Velpeau nem o suspeitava quando o publicou; e se tivéssemos podido citar todos, ver-se-ia que os fenômenos anestésicos não só provam a realidade da alma, mas a do Espiritismo.

É assim que tudo concorre, como foi anunciado, para abrir o caminho da doutrina nova; a ela se chega por uma porção de saídas, convergindo todas para um centro comum, e muita gente a ela traz a sua pedra, uns conscientemente, outros sem se darem conta.

A obra do Sr. Ramon de la Sagra é uma dessas cuja publicação temos o prazer de aplaudir, porque, não obstante nela se tenha feito abstração do Espiritismo, podemos considerá-las — como o Deus na Natureza, do Sr. Flammarion, e a A Pluralidade das Existências, do Sr. Pezzani — como monografias dos princípios fundamentais da Doutrina, às quais eles dão a autoridade da Ciência.


Allan Kardec.



[1] Um vol. in-12. Preço: 2 fr. 50; pelo Correio, 2 fr. 75. Germer-Baillière, livreiros, 17, rue de l’École-de-Médecine.  †  [L’âme: démonstration de sa réalité déduite de l’étude des effets du chloroforme et du curare sur l’économie animale - Google Books.]


[2] Anestesia, suspensão da sensibilidade; do grego a, privativo, e aistesin, sentir.


[3] O curare é uma substância eminentemente tóxica, que os selvagens do Orinoco  †  retiram de certas plantas e com a qual umedecem a ponta de suas flechas, que produzem feridas mortais.


Paris. – Typ. de Rouge frères, Dunon et Fresné, rue du Four-Saint-Germain,  †  43.


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