O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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Revista espírita — Ano II — Maio de 1859.

(Idioma francês)

Refutação de um artigo do “Univers”.

(Sumário)

1. — O jornal Univers, em sua edição de 13 de abril passado, traz um artigo do Abade Chesnel em que a questão do Espiritismo é longamente discutida. Nós o teríamos deixado de lado, como o fazemos a tantos outros aos quais não ligamos nenhuma importância, se se tratasse de uma dessas diatribes grosseiras que revelam, da parte de seus autores, a mais absoluta ignorância daquilo que atacam. Temos a satisfação de reconhecer que o artigo do Abade Chesnel é redigido num espírito completamente diferente. Pela moderação e conveniência da linguagem ele merece uma resposta, tanto mais necessária quanto o artigo contém um erro grave e pode dar uma ideia muito falsa, quer do Espiritismo em geral, quer em particular do caráter e do objetivo dos trabalhos da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Eis o artigo na íntegra:


“Todos conhecem o espiritualismo do Sr. Cousin, essa filosofia destinada a substituir lentamente a religião. Sob o mesmo título, hoje possuímos um corpo de doutrinas reveladas, que pouco a pouco se vai completando, e um culto muito simples, é verdade, mas de eficácia maravilhosa, pois que poria os devotos em comunicação real, sensível e quase permanente com o mundo sobrenatural.

“Esse culto tem reuniões periódicas, iniciadas pela invocação de um santo canonizado. Depois de constatada, entre os fiéis, a presença de São Luís, rei da França, pedem-lhe que proíba a entrada dos Espíritos malignos ao templo e leem a ata da sessão anterior. Em seguida, a convite do presidente, um médium se aproxima do secretário encarregado de anotar as perguntas feitas por um dos fiéis e as respostas que serão ditadas ao médium pelo Espírito invocado. A assembleia assiste gravemente, piedosamente, a essa cena de necromancia, por vezes bastante longa e, quando a ordem do dia se esgota, as pessoas se retiram mais convencidas do que nunca da veracidade do espiritualismo. No intervalo entre duas sessões, cada fiel aproveita a ocasião para manter um comércio assíduo, mas privado, com os Espíritos que lhe são mais acessíveis ou mais queridos. Os médiuns se multiplicam e quase não existem segredos na outra vida que eles não acabem por penetrar. Uma vez revelados aos fiéis, esses segredos não são ocultados ao público. A Revue spiritualiste — Google Books, que é publicada regularmente todos os meses, não recusa nenhuma assinatura profana e quem quiser poderá comprar os livros que contêm o texto revelado, com seu autêntico comentá-lo.

“Seríamos levados a crer que uma religião que consiste unicamente na evocação dos mortos fosse muito hostil à Igreja Católica, que jamais deixou de proibir a prática da necromancia. Mas esses pensamentos mesquinhos, por mais naturais que pareçam, não são menos estranhos, assegura-se, ao coração dos espiritualistas. Eles fazem justiça ao Evangelho e a seu Autor; confessam que Jesus viveu, agiu, falou e sofreu como narram os nossos quatro evangelistas. A doutrina evangélica é verdadeira; mas essa revelação, de que Jesus foi o instrumento, longe de excluir o progresso, deve ser completada. É o espiritualismo que dará ao Evangelho a sã interpretação que lhe falta e a complementação que ele espera há dezoito séculos.

“Entretanto, quem demarcará os limites ao progresso do Cristianismo ensinado, interpretado e desenvolvido tal qual o é pelas almas desprendidas da matéria, estranhas às paixões terrenas, aos nossos preconceitos e aos interesses humanos? O próprio infinito se nos desdobra. Ora, o infinito não tem limites e tudo nos leva a esperar que a revelação do infinito será continuada sem interrupção; à medida que se escoarem os séculos ver-se-ão revelações acrescidas a revelações, sem que jamais se esgotem esses mistérios, cuja extensão e profundidade parece aumentarem à medida que se liberam da obscuridade que até agora os envolvia.

“Daí a consequência de que o espiritualismo é uma religião, porque nos põe intimamente em relação com o infinito e absorve, alargando-o, o Cristianismo que, de todas as formas religiosas, presentes ou passadas, é, como facilmente se confessa, a mais elevada, a mais pura e a mais perfeita. Mas engrandecer o Cristianismo é tarefa difícil, que não pode ser realizada sem derrubar as barreiras por detrás das quais ele se mantém entrincheirado. Os racionalistas não respeitam nenhuma barreira; menos ardentes ou melhor avisados, os espiritualistas só encontram duas, cuja redução parece indispensável, a saber: a autoridade da Igreja Católica e o dogma das penas eternas.

“Esta vida constitui a única prova que ao homem é dado atravessar? A árvore ficará eternamente do lado em que caiu? O estado da alma, após a morte, é definitivo, irrevogável e eterno? Não, responde a necromancia espiritualista. A morte nada acaba, tudo recomeça. Para cada um de nós a morte é o ponto de partida de uma encarnação nova, de uma nova vida e de uma nova experiência.

“Segundo o panteísmo alemão, Deus não é o ser, mas o tornar-se eterno. Seja o que for de Deus, para os espiritualistas parisienses o homem não tem outro destino senão tornar-se progressivo ou regressivo, conforme seus méritos e obras. A lei moral ou religiosa tem uma verdadeira sanção nas outras vidas, onde os bons são recompensados e os maus punidos, mas durante um período mais ou menos longo, de anos ou de séculos, e não por toda a eternidade.

“Seria o espiritualismo a forma mística de erro de que o Sr. Jean Reynaud é o mais lídimo representante? Talvez. É permitido ir mais longe e dizer que entre o Sr. Reynaud e os novos sectários existe um laço mais estreito que o da comunidade de doutrinas? Talvez ainda. Mas essa questão, por falta de informações seguras, não será aqui resolvida de maneira decisiva.

“Mais que o parentesco ou as alianças heréticas do Sr. Jean Reynaud, o que importa muito mais é a confusão de ideias, de que é sinal o progresso do espiritualismo; é a ignorância em matéria de religião que torna possível tanta extravagância; é a leviandade com que homens, aliás estimáveis, acolhem essas revelações do outro mundo, que não possuem nenhum mérito, nem mesmo o da novidade.

“Não é necessário remontar a Pitágoras e aos sacerdotes egípcios para descobrirmos as origens do espiritualismo contemporâneo. Encontrá-las-emos ao manusear as atas do magnetismo animal.

“Desde o século XVIII a necromancia já desempenhava um grande papel nas práticas do magnetismo e, vários anos antes que se manifestassem os Espíritos batedores na América, dizia-se que certos magnetizadores franceses obtinham, da boca dos mortos ou dos dem6nios, a confirmação das doutrinas condenadas pela Igreja, notadamente a dos erros de Orígenes, relativos à conversão futura dos anjos maus e dos réprobos.

“Igualmente é preciso dizer que o médium espiritualista, no exercício de suas funções, pouco difere do sujeito nas mãos do magnetizador, e que o círculo abraçado pelas revelações do primeiro também não ultrapassa aquele que é delimitado pela visão do segundo.

“Os ensinamentos que a curiosidade pública obtém nos negócios privados, por meio da necromancia, em geral nada revelam além daquilo que antes já era sabido. A resposta do médium espiritualista é obscura nos pontos em que nossas pesquisas pessoais não puderam esclarecer; é clara e precisa naquilo que bem conhecemos; muda em tudo quanto escapa aos nossos estudos e esforços. Numa palavra, parece que o médium tem uma visão magnética de nossa alma, mas nada descobre além do que nela se encontra gravado. Mas essa explicação, que parece muito simples, está entretanto sujeita a graves dificuldades. Supõe, com efeito, que uma alma possa ler naturalmente no fundo de outra alma, sem o concurso de sinais e independentemente da vontade daquele que, à primeira vista, se tornasse um livro aberto e muito legível. Ora, os anjos bons ou maus naturalmente não possuem esse privilégio, nem quanto a nós, nem nas relações diretas que mantêm entre si. Somente Deus penetra imediatamente os Espíritos e perscruta até o fundo dos corações mais obstinadamente fechados à sua luz.

“Se os mais estranhos fatos espiritualistas que se contam são autênticos, será preciso, para os explicar, que se recorra a outros princípios. Esquece-se com frequência que esses fatos geralmente se referem a um objeto que preocupa fortemente o coração ou a inteligência, que provocou longas pesquisas e do qual muitas vezes falamos fora da consulta espiritualista. Nessas condições, que não devem ser perdidas de vista, um certo conhecimento das coisas que nos interessam não ultrapassa absolutamente os limites naturais do poder dos Espíritos.

“Seja como for, no espetáculo que hoje nos oferecem nada mais há que a evolução do magnetismo, que se esforça por tornar-se uma religião.

“Sob a forma dogmática e polêmica que deve a nova religião ao Sr. Jean Reynaud, ela incorreu na condenação do Concílio de Périgueux [v. Réponse au Concile de Périgueux, par Jean Reynaud — Google Books.], cuja autoridade, como todos estão lembrados, foi gravemente negada pelo culpado.

“Na forma mística que hoje assume em Paris, ela merece ser estudada, pelo menos como sinal dos tempos em que vivemos. O espiritualismo já recrutou um certo número de homens, entre os quais diversos são honrosamente conhecidos no mundo. Esse poder de sedução que ele exerce, o lento, mas ininterrupto progresso, que lhe é atribuído por testemunhas dignas de fé, as pretensões que apregoa, os problemas que apresenta, o mal que pode fazer às almas, eis, sem dúvida, motivos por demais reunidos para atrair a atenção dos católicos. Guardemo-nos de atribuir à nova seita mais importância do que realmente merece. Mas, para evitar o exagero, que tudo amplia, não caiamos também na mania de negar ou de amesquinhar todas as coisas. Nolite omni spiritui credere, sed probate spiritus si ex Deo sint ; quoniam multi pseudoprophetæ exierunt in mundum (I Joannis 4:1) [Não creiais em todo Espírito, mas provai se os Espíritos são de Deus; porque são muitos os falsos profetas, que se levantaram no mundo.]”


Abade François Chesnel.


2. — Senhor Abade,

O artigo que publicastes no Univers, relativamente ao Espiritismo, contém vários erros que importa retificar e que procedem, fora de dúvida, de um incompleto estudo da matéria. Para os refutar a todos, fora preciso retomar, desde o princípio, os diversos pontos da teoria, bem como os fatos que lhe servem de base, o que absolutamente não tenho a intenção de fazer aqui. Limito-me, pois, aos pontos principais.

2 Fizestes bem em reconhecer que as ideias espíritas “recrutaram um certo número de homens honrosamente conhecidos no mundo”. Esse fato, cuja realidade ultrapassa de muito aquilo que acreditais, incontestavelmente merece a atenção de todo homem sério, pois tantas personalidades, eminentes pela inteligência, pelo saber e pela posição social não se apaixonariam por uma ideia despida de algum fundamento. A conclusão natural é que no fundo de tudo isso deve haver alguma coisa.

3 Talvez objetareis que certas doutrinas, meio religiosas, meio sociais, nos últimos anos encontraram sectários nas próprias fileiras da aristocracia intelectual, o que não as impediu de cair no ridículo. Assim, pois, os homens de inteligência podem se deixar seduzir pelas utopias.

4 A isso responderei que as utopias têm o seu tempo: cedo ou tarde a razão lhes faz justiça. Assim será com o Espiritismo, se ele não for uma utopia. Mas se for uma verdade, triunfará de todas as oposições, de todos os sarcasmos; direi mesmo, de todas as perseguições, se estas ainda pertencessem ao nosso século, e os detratores nada aproveitarão. Custe o que custar, seus opositores serão obrigados a aceitá-lo, como aceitaram tantas coisas contra as quais se havia protestado supostamente em nome da razão. 5 O Espiritismo é uma verdade? O futuro o julgará. Parece, no entanto, que já se pronuncia, tal a rapidez com que essas ideias se propagam. E, notai bem, não é na classe ignorante e analfabeta que se encontram aderentes, mas, bem ao contrário, entre as pessoas esclarecidas.

6 É de notar-se ainda que todas as doutrinas filosóficas constituem obra de homens, imbuídos de ideais mais ou menos grandes, mais ou menos justos; todas têm um chefe, em torno do qual se agruparam outros homens que partilham do mesmo ponto de vista.

7 Quem é o autor do Espiritismo? Verdadeira ou falsa, quem imaginou essa teoria? É verdade que se procurou coordená-la, formulá-la, explicá-la. Mas quem concebeu a ideia primeira? Ninguém; ou, melhor dizendo, todo mundo, porque todos puderam ver, e os que não viram foram aqueles que não quiseram ver ou o quiseram à sua maneira, sem sair do círculo das ideias preconcebidas, o que fez com que vissem e julgassem mal. 8 O Espiritismo decorre de observações que cada um pode fazer e que não constituem privilégio de ninguém, o que explica a sua irresistível propagação. Não é o produto de nenhum sistema individual, e é isso que o distingue de todas as outras doutrinas filosóficas.

9 Dissestes que essas revelações do outro mundo nem mesmo têm o mérito da novidade. Seria, pois, um mérito a novidade? Quem alguma vez pretendeu que fosse uma invenção moderna? Sendo uma consequência da natureza humana, e ocorrendo pela vontade de Deus, essas comunicações fazem parte das leis imutáveis pelas quais Ele rege o mundo; devem ter existido, pois, desde que o homem existe na Terra. Eis por que as encontramos na mais remota Antiguidade, entre todos os povos, tanto na história profana quanto na história sagrada. A ancianidade e a universalidade dessa crença são argumentos em seu favor. Daí a tirar conclusões desfavoráveis seria, acima de tudo, faltar de todo com a lógica.

10 Em seguida dissestes que a faculdade dos médiuns pouco difere da dos sujeitos na mão do magnetizador, de outra maneira dito sonâmbulo; mas admitamos até que haja perfeita identidade.

11 Qual poderia ser a causa dessa admirável clarividência sonambúlica que não encontra obstáculo nem na matéria nem na distância, e que se exerce sem o concurso dos órgãos da visão? Não seria a mais patente demonstração da existência e da individualidade da alma, pivô da religião?

12 Se eu fosse sacerdote, e se durante o sermão quisesse provar que há em nós algo mais que o corpo, demonstrá-lo-ia de maneira irrecusável pelos fenômenos do sonambulismo, natural ou artificial. Se a mediunidade nada mais é que uma variedade do sonambulismo, nem por isso seus efeitos são menos dignos de observação. Neles eu encontraria uma prova a mais em favor de minha tese e dela faria uma nova arma contra o ateísmo e o materialismo. 13 Todas as nossas faculdades são obra de Deus. Quanto maiores e mais maravilhosas, mais elas atestam o seu poder e a sua bondade.

14 Para mim, que durante trinta e cinco anos fiz um estudo especial do sonambulismo; que nele vi uma variedade não menos profunda de quantas modalidades existem de médiuns, asseguro, como todos aqueles que não julgam à vista de uma só face do problema, que o médium é dotado de uma faculdade particular, que não se pode confundir com o sonâmbulo, e que a perfeita independência de seu pensamento é provada por fatos da maior evidência, por todos aqueles que se colocam nas condições requeridas para observar sem parcialidade. 15 Abstração feita das comunicações escritas, qual o sonâmbulo que jamais fez brotar um pensamento de um corpo inerte? Que produziu aparições visíveis e até mesmo tangíveis? Que pôde manter um corpo pesado no espaço sem ponto de apoio? Terá sido por efeito sonambúlico que um médium desenhou, há quinze dias, em minha casa, na presença de vinte testemunhas, o retrato de uma pessoa jovem, falecida há dezoito meses, que ele não havia jamais conhecido, retrato reconhecido pelo pai, que se achava presente na sessão? Será por efeito sonambúlico que uma mesa responde com precisão às perguntas propostas, inclusive a perguntas mentais? 16 Certamente, se admitirmos que o médium esteja num estado magnético, parece difícil acreditar que a mesa seja sonâmbula.

17 Dizeis que o médium não fala com clareza senão das coisas que conhece. Como explicar o seguinte fato, e centenas de outros do mesmo gênero, que se reproduziram inúmeras vezes e que são do meu conhecimento pessoal? Um de meus amigos, excelente médium psicógrafo, pergunta a um Espírito se uma pessoa que ele não via há quinze anos ainda pertencia a este mundo. “Sim, ela ainda vive; mora em Paris, à rua tal, número tanto.” Ele vai e encontra a pessoa no endereço indicado. Foi uma ilusão? Seu pensamento poderia sugerir-lhe essa resposta? Se, em certos casos, as respostas podem coincidir com o pensamento, é racional concluir que se trata de uma lei geral? Nisso, como em todas as coisas, os julgamentos precipitados são sempre perigosos, porque podem ser desmentidos pelos fatos que não foram observados.

18 Apesar disso, Sr. abade, minha intenção não é dar aqui um curso de Espiritismo, nem discutir se ele é certo ou errado. Seria preciso, como o disse há pouco, relembrar os numerosos fatos que citei na Revista Espírita, bem como as explicações dadas em meus diversos escritos. 19 Chego, enfim, à parte de vosso artigo que me parece mais importante.

Intitulais vosso artigo: “Uma nova religião em Paris”. Admitindo que tal fosse, com efeito, o caráter do Espiritismo, aí haveria um primeiro erro, considerando-se que ele está longe de circunscrever-se a Paris.  †  Conta milhões de aderentes espalhados nas cinco partes do mundo e Paris não foi o foco primitivo.

20 Em segundo lugar, o Espiritismo é uma religião? Fácil é demonstrar o contrário. n

O Espiritismo está baseado na existência de um mundo invisível, formado de seres incorpóreos que povoam o espaço e que nada mais são do que as almas dos que viveram na Terra ou em outros globos, onde deixaram os seus invólucros materiais. São esses seres que havíamos dado, ou melhor, que se deram o nome de Espíritos. Esses seres, que nos rodeiam incessantemente, exercem sobre os homens, mau grado seu, uma grande influência; desempenham um papel muito ativo no mundo moral e, até certo ponto, no mundo físico. 21 O Espiritismo, pois, está em a Natureza e pode-se dizer que, numa certa ordem de ideias, é uma força, como a eletricidade também o é sob diferente ponto de vista, assim como a gravitação universal, igualmente. 22 Ele nos desvenda o mundo dos invisíveis, como o microscópio nos desvendou o mundo dos infinitamente pequenos, cuja existência nem suspeitávamos. Os fenômenos cuja fonte é esse mundo invisível devem ter-se produzido e se produziram em todos os tempos, razão por que a história de todos os povos lhes faz menção. Apenas os homens, em sua ignorância, os atribuíram a causas mais ou menos hipotéticas e, a propósito, deram livre curso à imaginação, como o fizeram com todos os fenômenos cuja natureza só imperfeitamente conheciam.

23 O Espiritismo, melhor observado desde que se vulgarizou, vem lançar luz sobre uma multidão de problemas até aqui insolúveis ou mal resolvidos. Seu verdadeiro caráter é, pois, o de uma ciência e não o de uma religião, 24 e a prova disso é que conta, entre seus aderentes, homens de todas as crenças, e que nem por isso renunciaram às suas convicções: católicos fervorosos, que praticam todos os deveres de seu culto, protestantes de todas as seitas, israelitas, muçulmanos e até budistas e bramanistas. Há de tudo, exceto materialistas e ateus, porque essas ideias são incompatíveis com as observações espíritas. 25 O Espiritismo, pois, repousa sobre princípios gerais, independentes de toda questão dogmática. 26 É verdade que tem consequências morais, como todas as ciências filosóficas. Essas consequências são no sentido do Cristianismo, porque, de todas as doutrinas, o Cristianismo é a mais esclarecida, a mais pura, razão por que, de todas as seitas religiosas do mundo, são as cristãs as mais aptas a compreendê-lo em sua verdadeira essência.

27 O Espiritismo não é, pois, uma religião. Se o fosse teria seu culto, seus templos, seus ministros. 28 Sem dúvida cada um pode fazer uma religião de suas opiniões e interpretar à vontade as religiões conhecidas, mas daí à constituição de uma nova Igreja há uma grande distância e creio que seria imprudência seguir tal ideia. 29 Em resumo, o Espiritismo se ocupa da observação dos fatos e não das particularidades de tal ou qual crença, da pesquisa das causas, da explicação que esses fatos podem dar de fenômenos conhecidos, assim na ordem moral como na ordem física, e não impõe nenhum culto aos seus partidários, como a astronomia não impõe o culto dos astros, nem a pirotecnia o culto do fogo. 30 Ainda mais: do mesmo modo que o sabeísmo nasceu da astronomia mal compreendida, o Espiritismo, mal compreendido na Antiguidade, foi a fonte do politeísmo. 31 Hoje, graças às luzes do Cristianismo, podemos julgá-lo com mais critério. Ele nos põe em guarda contra os sistemas errôneos, frutos da ignorância, 32 e a própria religião nele pode haurir a prova palpável de muitas verdades contestadas por certas opiniões. Eis por que, contrariando a maior parte das ciências filosóficas, um dos seus efeitos é reconduzir às ideias religiosas aqueles que se extraviaram num cepticismo exagerado.

33 A Sociedade a que vos referis define seu objetivo no próprio título; a denominação Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas não se assemelha ao de nenhuma seita; tão diferente é o seu caráter que seu estatuto proíbe tratar de questões religiosas; está classificada na categoria das sociedades científicas, porque, com efeito, seu objetivo é estudar e aprofundar todos os fenômenos que resultam das relações entre os mundos visível e invisível; tem seu presidente, seu secretário e seu tesoureiro, como todas as sociedades; não convida o público às suas sessões; ali não se faz nenhum discurso, nem coisa alguma que tenha o caráter de um culto qualquer. Conduz os seus trabalhos com calma e recolhimento, primeiro porque é uma condição necessária para as observações e, segundo, porque sabe que devem ser respeitados aqueles que não vivem mais na Terra. Ela os chama em nome de Deus porque crê em Deus, em sua Onipotência e sabe que nada se faz neste mundo sem a sua permissão. Abre as sessões com um apelo geral aos bons Espíritos, uma vez que, sabendo que os há bons e maus, cuida para que estes últimos não venham se misturar fraudulentamente nas comunicações que recebe e induzi-la em erro. 34 O que prova isso? Que não somos ateus; mas de modo algum implica que sejamos partidários de uma religião. Disso deveria ter ficado convencida a pessoa que vos descreveu o que se passa entre nós, se tivesse acompanhado os nossos trabalhos e, sobretudo, se os tivesse julgado com menos leviandade e talvez com espírito menos prevenido e menos apaixonado. 35 Assim, os próprios fatos protestam contra a qualificação de nova seita que destes à Sociedade, certamente por não a conhecerdes melhor.

36 Terminais vosso artigo chamando a atenção dos católicos para o mal que o Espiritismo pode fazer às almas. Se as consequências do Espiritismo fossem a negação de Deus, da alma, de sua individualidade após a morte, do livre-arbítrio do homem, das penas e recompensas futuras, seria uma doutrina profundamente imoral. Longe disso, ele prova, não pelo raciocínio, mas pelos fatos, essas bases fundamentais da religião, cujo inimigo mais poderoso é o materialismo. 37 Mais ainda: por suas consequências ensina a suportar com resignação as misérias desta vida; acalma o desespero; ensina os homens a se amarem como irmãos, conforme os divinos preceitos de Jesus. 38 Se soubésseis, como eu, quantos incrédulos endurecidos ele fez renascer; quantas vítimas arrancou ao suicídio pela perspectiva da sorte reservada aos que abreviam a vida, contrariando a vontade de Deus; quantos ódios acalmou, quantos inimigos aproximou! É a isso que chamais fazer mal às almas? Não; não podeis pensar assim. Prefiro supor que, se o conhecêsseis melhor, o julgaríeis de outra maneira.

39 Direis que a religião pode fazer tudo isso. Longe de mim contestá-lo. Mas acreditais que teria sido melhor, para aqueles que ela encontrou rebeldes, permanecerem numa incredulidade absoluta? Se o Espiritismo triunfou sobre eles, se lhes tornou claro o que antes era obscuro, evidente o que lhes parecia duvidoso, onde o mal? Para mim, em lugar de perder almas, ele as salvou.

Aceitai, etc.

Allan Kardec.


[Revista de julho de 1859.]

3 Resposta à Réplica do Abade Chesnel no “Univers”.


O jornal Univers inseriu, em seu número de 28 de maio último, a resposta que havíamos dado ao artigo do Abade Chesnel sobre o Espiritismo, fazendo-a seguir de uma réplica deste último. Reproduzindo todos os argumentos do primeiro, menos a urbanidade da forma com que todo mundo concordou em fazer justiça, não poderíamos responder a esse segundo artigo senão repetindo o que já havíamos dito, o que nos parece totalmente inútil. O Abade Chesnel esforça-se sempre por provar que o Espiritismo é, deve ser e não pode deixar de ser senão uma religião nova, porque dele decorre uma filosofia e porque nele nos ocupamos da constituição física e moral dos mundos. Sob esse aspecto, todas as filosofias seriam religiões. Ora, como os sistemas afluem em abundância e todos eles têm partidários mais ou menos numerosos, isso restringiria singularmente o círculo do catolicismo. Não sabemos até que ponto seria imprudente e perigoso enunciar semelhante doutrina, porquanto é provocar uma cisão que não existe; é, pelo menos, dar-lhe uma ideia. Vede, um pouco, a que consequências chegais. Quando a ciência veio contestar o sentido do texto bíblico dos seis dias da Criação, lançaram anátemas e disseram que era um ataque à religião. Hoje, que os fatos deram razão à ciência, que já não há meios de os contestar a não ser negando a luz, a Igreja se pôs de acordo com a ciência.

Suponhamos, então, que se tivesse dito que aquela teoria científica era uma religião nova, uma seita, porque parecia em contradição com os livros sagrados e porque lançava por terra uma interpretação dada há séculos, daí resultando que não era possível ser católico e adotar essas ideias novas. Pensemos, pois, a que se reduziria o número dos católicos, se fossem excluídos todos os que não acreditam que Deus fez a Terra em seis vezes vinte e quatro horas!

Sucede o mesmo com o Espiritismo. Se o olhais como uma religião nova, é que aos vossos olhos ele não é católico. Ora, acompanhai bem o nosso raciocínio. De duas uma: ou é uma realidade, ou uma utopia. Se é uma utopia, não há por que se preocupar com ele, já que cairá por si mesmo. Se é uma realidade, todos os raios não o impedirão de ser, da mesma forma que, outrora, a Terra jamais foi impedida de girar. Se, verdadeiramente, há um mundo invisível que nos circunda; se podemos entrar em comunicação com esse mundo e dele obter ensinamentos sobre o estado de seus habitantes – e todo o Espiritismo está aí contido – em pouco tempo isso parecerá tão natural como ver o Sol ao meio-dia ou encontrar milhares de seres vivos e invisíveis numa gota de água límpida. Essa crença se tornará tão comum que sereis forçados a vos render à evidência. Se aos vossos olhos essa crença é uma religião nova, ele está fora do catolicismo, porque não pode ser simultaneamente a religião católica e uma religião nova. Se, pela força das coisas e da evidência, ela se generalizar – e não poderá deixar de ser assim, já que se trata de uma lei da Natureza – conforme o vosso ponto de vista não haveria mais católicos e vós mesmo não mais sereis católico, porque vos vereis forçado a agir como todo mundo.

Eis, senhor abade, o terreno sobre o qual nos arrasta a vossa doutrina, e ela é tão absoluta que já me gratificais com o título de sumo-sacerdote dessa religião, uma honra da qual eu não suspeitava. Mas ides mais longe: na vossa opinião, todos os médiuns são sacerdotes dessa religião. Aqui eu vos detenho em nome da lógica. Até agora havia-me parecido que as funções sacerdotais eram facultativas; que se era sacerdote apenas por um ato da própria vontade; que não se o era à revelia e em virtude de uma faculdade natural. Ora, a faculdade mediúnica é uma faculdade natural, que depende da sua organização, como a faculdade sonambúlica; não requer sexo, idade ou instrução, pois a encontramos nas crianças, nas mulheres e nos velhos, assim nos sábios como nos ignorantes. Seria compreensível que rapazes e moças fossem sacerdotes e sacerdotisas sem o querer e sem o saber? Em verdade, Sr. abade, é abusar do direito de interpretar as palavras. Como já disse, o Espiritismo está fora de todas as crenças dogmáticas, com as quais não se preocupa. Não o consideramos senão como ciência filosófica, que nos explica uma porção de coisas que não compreendemos e, por isso mesmo, em vez de abafar as ideias religiosas, como certas filosofias, faz brotá-las naqueles em que elas não existem. Mas se a todo custo o quiserdes elevar ao nível de uma religião, vós mesmos o lançais num caminho novo. É o que compreendem perfeitamente muitos eclesiásticos que, longe de se deixarem arrastar para o cisma, se esforçam por conciliar as coisas, em virtude deste raciocínio: Se há manifestações do mundo invisível, isso não pode ocorrer senão pela vontade de Deus e nós não podemos ir contra a sua vontade, a menos que digamos que, neste mundo, aconteça alguma coisa sem a sua permissão, o que seria uma impiedade. Se eu tivesse a honra de ser sacerdote, disto me serviria em favor da religião; dela faria uma arma contra a incredulidade e diria aos materialistas e ateus: Pedis provas? Ei-las: é Deus quem as envia.



[1] N. do T.: Em vão se tentará negar o aspecto religioso do Espiritismo, tomando por base, de forma isolada, o presente raciocínio de Allan Kardec. Há que se examinar o conjunto de sua obra, a fim de não se chegar a conclusões precipitadas. Na Revista Espírita de dezembro de 1868 o Codificador defende de maneira peremptória o caráter religioso da Doutrina Espírita.


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